segunda-feira, 1 de março de 2010

Henry & June (1990, EUA)***


Direção: Philip Caufman. Com: Fed Ward, Uma Thurman, Maria de Medeiros, Richard E. Grant, Kevin Spacey, Jean-Philippe Ecoffey.

Em Paris, no início dos anos 1930, a mulher espanhola de um cineasta francês, Anais Nin (1903/1977), entrega-se a Henry Miller (1891/1980), escritor americano, então pouco conhecido, casado com uma ex-taxi-girl. O quarteto mantém entre si uma estranha relação de amizade e sexo. Essa adaptação de uma parte dos diários de Anais Nin, feita pelo diretor de A Insustentável Leveza do Ser e inicialmente considerada pornográfica pela Motion Picture Association of America, só foi liberada para maiores de 17 anos após muita "briga". O espectador não deve esperar, porém, o tom terrivelmente cáustico , agressivo e sexual dos livros de Miller (que na época enfocada escrevia Trópico de Câncer). O filme é tão bucólico, literário, cerebral e lento que as poucas cenas eróticas, inclusive as de lesbianismo, mais entediam do que provocam. Nada a ver, portanto, com os escândalos dos livros de Miller, e tudo a ver com o tom poético dos escritos de Nin. Isso talvez porque Kaufman seja admirador confesso da escritora (Maria de Medeiros, portuguesa, excelente atriz de teatro). Destinado a um público específico, tem elaborada fotografia de Phillippe Russelot e conta com a beleza notável de Uma Thurman, a Vênus de As Aventuras do Barão de Münchausen. Roteiro do diretor e de sua mulher, Rose.

Escondendo A Grana (1970, ING)***

Direção: Silvio Narizzano. Com: Richard Attenborough, Lee Remick, Hywell Bennett, Milo O´Shea, Roy Holder, Dick Emery, Joe Lynch.

Jovem homossexual e seu amante, motorista de uma funerária, roubam um banco e escondem o dinheiro no caixão da mãe do primeiro, que está prestes a ser enterrada. Inspetor da Scotland Yard investiga o caso e provoca uma série de confusões. Irreverência e humor negro em adaptação da peça de Joe Orton (biografado em O Amor Não Tem Sexo). A inteligência dos diálogos, as situações inusitadas e a surpreendente intrepretação de Attenborough (diretor de Gandhi), parodiando o Inspetor Clouseu de Peter Sellers, compensam o empoeirado tom "anos 1960" do filme.

Coronel Redl (1985, ALE/HUN/AUS)*****

Direção: István Szabó. Com: Klaus Maria Brandauer, Armin Müller-Stahl, Gudrun Landgrebe, Jan Niklas, Hans-Christian Blech, Laszlo Mensaros.

Jovem de origem humilde faz amizade com pessoas influentes e inicia carreira no círculo fechado de oficiais do Exército do Império Austro-Húngaro nos anos anteriores à I Guerra Mundial; chega ao posto de coronel e chefe do Serviço de Inteligência, homem de confiança de ministros, mas cada vez mais vulnerável. Mais uma obra-prima da equipe que produziu Mephisto (1981), desta vez contando a história de um personagem real (e também inspirada na peça A Patriot For Me, de John Osborne). Brandauer está soberbo no papel-título. Zdenko Tamassy, que já demonstrara sua competência em Mephisto, dá aqui nova aula de como utilizar a música no cinema (atenção para a ironia do trecho em que ele usa a conhecida Marcha Radetzky, de Johann Strauss, pai, composta em homenagem ao lendário herói austríaco, Marechal Radetzky).

O Amor Não Tem Sexo (1986, ING)****

Direção: Stephen Frears. Com: GaryOldman, Alfred Molina, Vanessa Redgrave, Wallace Shawn, , Julie Walters, Frances Barber.

Os últimos dias de vida do famoso dramaturgo inglês Joe Orton, assassinado por seu amante, que desconfiava estar sendo traído. Quase um documentário, descreve um pouco da personalidade desse homem talentoso e vaidoso, que gostava de trocar de parceiros sexuais caçando-os em banheiros públicos de Londres. Vanessa Redgrave faz rápida aparição enriquecendo mais ainda esse que é um dos melhores filmes sobre homossexualismo já realizados.

Mistérios da Carne (2004, EUA)

Direção: Gregg Araki. Com: Kelly Joseph Gordon-Levitt, Brady Corbet, Elisabeth Shue, Michelle Trachtenberg, Bill Sage, Chris Mulkey.


"A grande surpresa de Mistérios da Carne não está na primeira evidência que o filme entrega – a de um trauma originário que repercute de forma absolutamente antagônica na vida de dois adolescentes. Nem na estilização – a meio caminho entre o virtuosismo e o acometimento profundo em relação ao assunto em questão – que seu diretor/roteirista/montador Gregg Araki depura ao longo de 99 minutos. O que espanta e deslumbra neste filme são as saídas, sempre cativantes, que ele encontra diante das suas muitas sinucas de bico. O trauma deixa de ser assunto psicanalítico à mesma medida que não se esconde em figuras de recalque: é pela construção de um imaginário – fantasia romântica de um verão perdido no tempo ou fábula sci-fi de abdução por alienígenas – que Mistérios da Carne retorna à cena inaugural da história que conta, ou seja, ao abuso sexual de duas crianças por um adulto. Mas talvez o filme torne inapropriada essa expressão outrora inequívoca, "abuso", tamanha a peculiaridade de seu relato.
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Neil leva a cicatriz para dentro da carne, revisitando-a todos os dias ao prostituir-se para homens mais velhos. Eterno desejo de imagem, para um, e eterno desejo de corpo, para outro. Mas o mistério é o mesmo: a história de aliens e a aventura por motéis e boates guardam uma origem comum, são homólogas e portanto inseparáveis. Ou melhor: devem se reatar um dia (como acontece no final). Esse episódio que aparentemente só pediria um tratamento, o do repúdio e do asco, rende para Gregg Araki um misto de sobriedade e obnubilação. Ele pôs a interrogação de parti pris que nenhum outro filme anterior que tratasse do mesmo assunto havia posto de verdade: nós adultos só conseguimos olhar para a pedofilia do treinador com ares reprovadores e indignados, mas o que um acontecimento como esse representa na mente da criança que o vivencia? A partir dessa crucial interrogação, o filme não consegue se fixar nem na sordidez nem na doçura (pois doce é a forma do treinador se aproximar dos meninos), e se torna todo ele uma paisagem tão turva quanto interior – ainda que essa paisagem se dê a ver na pele, nos rostos (maquiados ou não), nas paredes com pôsteres ou pichações, nos signos externos. A fronteira entre os planos subjetivos e aqueles mais próximos de um registro direto se torna aqui bastante oscilatória.
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Não é fácil saber toda a verdade e ter de lidar com ela constantemente, como Neil confessa a Brian. Dali em diante tudo mudará para melhor? Ou será ladeira abaixo? Resposta que não cabe ao filme induzir. O importante é ter em mente que descer a ladeira, em Mistérios da Carne, não significa perder a viagem, ou muito menos passar ao largo da beleza que pode existir na trajetória de vida de uma pessoa. Até onde o filme se permite ir, sobressai a vontade expressa em palavras por Neil, e que Araki realiza ao fazer o espaço ao redor deles sumir e a câmera se distanciar para atingir a escuridão do céu noturno, aquele em que se insinuam as estrelas, os cometas e os discos voadores. Desaparição: desejo maior que a vida, porém inegável neste filme."


Luiz Carlos Oliveira Jr.  in http://www.contracampo.com.br/75/misteriosdacarne.htm