segunda-feira, 1 de março de 2010

Mistérios da Carne (2004, EUA)

Direção: Gregg Araki. Com: Kelly Joseph Gordon-Levitt, Brady Corbet, Elisabeth Shue, Michelle Trachtenberg, Bill Sage, Chris Mulkey.


"A grande surpresa de Mistérios da Carne não está na primeira evidência que o filme entrega – a de um trauma originário que repercute de forma absolutamente antagônica na vida de dois adolescentes. Nem na estilização – a meio caminho entre o virtuosismo e o acometimento profundo em relação ao assunto em questão – que seu diretor/roteirista/montador Gregg Araki depura ao longo de 99 minutos. O que espanta e deslumbra neste filme são as saídas, sempre cativantes, que ele encontra diante das suas muitas sinucas de bico. O trauma deixa de ser assunto psicanalítico à mesma medida que não se esconde em figuras de recalque: é pela construção de um imaginário – fantasia romântica de um verão perdido no tempo ou fábula sci-fi de abdução por alienígenas – que Mistérios da Carne retorna à cena inaugural da história que conta, ou seja, ao abuso sexual de duas crianças por um adulto. Mas talvez o filme torne inapropriada essa expressão outrora inequívoca, "abuso", tamanha a peculiaridade de seu relato.
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Neil leva a cicatriz para dentro da carne, revisitando-a todos os dias ao prostituir-se para homens mais velhos. Eterno desejo de imagem, para um, e eterno desejo de corpo, para outro. Mas o mistério é o mesmo: a história de aliens e a aventura por motéis e boates guardam uma origem comum, são homólogas e portanto inseparáveis. Ou melhor: devem se reatar um dia (como acontece no final). Esse episódio que aparentemente só pediria um tratamento, o do repúdio e do asco, rende para Gregg Araki um misto de sobriedade e obnubilação. Ele pôs a interrogação de parti pris que nenhum outro filme anterior que tratasse do mesmo assunto havia posto de verdade: nós adultos só conseguimos olhar para a pedofilia do treinador com ares reprovadores e indignados, mas o que um acontecimento como esse representa na mente da criança que o vivencia? A partir dessa crucial interrogação, o filme não consegue se fixar nem na sordidez nem na doçura (pois doce é a forma do treinador se aproximar dos meninos), e se torna todo ele uma paisagem tão turva quanto interior – ainda que essa paisagem se dê a ver na pele, nos rostos (maquiados ou não), nas paredes com pôsteres ou pichações, nos signos externos. A fronteira entre os planos subjetivos e aqueles mais próximos de um registro direto se torna aqui bastante oscilatória.
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Não é fácil saber toda a verdade e ter de lidar com ela constantemente, como Neil confessa a Brian. Dali em diante tudo mudará para melhor? Ou será ladeira abaixo? Resposta que não cabe ao filme induzir. O importante é ter em mente que descer a ladeira, em Mistérios da Carne, não significa perder a viagem, ou muito menos passar ao largo da beleza que pode existir na trajetória de vida de uma pessoa. Até onde o filme se permite ir, sobressai a vontade expressa em palavras por Neil, e que Araki realiza ao fazer o espaço ao redor deles sumir e a câmera se distanciar para atingir a escuridão do céu noturno, aquele em que se insinuam as estrelas, os cometas e os discos voadores. Desaparição: desejo maior que a vida, porém inegável neste filme."


Luiz Carlos Oliveira Jr.  in http://www.contracampo.com.br/75/misteriosdacarne.htm